O silêncio que ofende a consciência nacional
por Saul Leblon, em Carta Maior, 14 de novembro de 2012
Janio de Freitas, o decano dos comentaristas políticos do país, de
quem não se pode dizer que seja simpatizante do PT, nem mesmo
remotamente lulista, carrega algo indisponível nas dobradiças
gelatinosas que compõem a espinha intelectual e profissional da maioria
dos colunistas do dispositivo midiático conservador: ética profissional.
Sua coluna desta 3ª feira na ‘Folha’, ‘A voz das provas’, funciona
como aquela sirene solitária que todavia não hesita em dar ao odor
exalado das páginas ao seu redor o significado que tem na história.
A Suprema Corte do país, a quem caberia em última instância a tarefa
de resguardar a Constituição e o Direito, condenou lideranças políticas
da esquerda brasileira com base em descarga verborrágica desprovida do
fundamento basilar de um sentença em regime democrático: a prova do
delito.
‘A voz das provas’, demonstra o artigo de Janio de Freitas, foi
toscamente substituída e abafada “pelas imputações (do relator Joaquim
Barbosa) compostas só de palavras”.
A ausência do imprescindível foi tolerada; mais que isso, aplaudida e
incentivada. Para legitimar o interesse intrínseco à pauta, animadores
do circo se esponjaram nas acrobacias do mesmo vale tudo que imputam aos
réus agora condenados.
A contradição nos seus próprios termos inclui até mesmo ignorar aquilo que se publica.
Janio não deixa de anotar que foi somente às vésperas do desfecho
cobiçado pelo conservadorismo que, ” ao pé da página A 6 de domingo”–
referência do atilado colunista–, a mesma ‘Folha’ que nesta 3ª feira
estampa editorial em 1ª página alinhado aos festejos comemorativos da
sentença, entrevistou o jurista alemão Claus Roxin.
Trata-se de um dos teóricos responsáveis pelo conceito do ‘domínio do
fato’. Teria sido com base nessa viga mestra que a Suprema Corte do
país, impulsionada pelo jogral midiático, considerou-se dispensada de
reunir provas para a condenação consumada na 2ª feira.
Doutos rábulas de redações Brasil afora, e sabichões de menor porte,
todavia loquazes na arte da guilhotina higienizadora da ganância petista
pelo poder, teceram proficientes considerações sobre a pertinência do
‘domínio do fato’.
Tornou-se a ‘Eureka!’ do conservadorismo togado e das consciências
sempre hesitantes no meio fio da história. Bastava recitar: “o superior
hierárquico de um suposto ilícito paga pelo crime, mesmo sem provas
diretas que o comprometam”. E danem-se as minúcias. Entre elas a
oportuna transfiguração da multinacional Visanet em anexo do Banco do
Brasil; mas também a seletiva escolha de um único, entre quatro
diretores de marketing –por acaso, um petista- para avalizar o argumento
do elo com o PT na acusação do peculato doloso (leia neste blog ‘A
ocultação deliberada para condenar o PT).
Assim se fabricou a distinção em relação ao que tem sido a praxe
eleitoral suprapartidária. Não se exima o caixa 2 da nódoa que
amesquinha programas, aleija lideranças e frauda a urna. Mas não é disso
que se trata. Não é a reforma politica; não é o fortalecimento da
democracia participativa; não é isso o que persegue o coro em torno da
Ação Penal 470.
Só a ingenuidade dos que acreditam –ou fingem acreditar– que a Ação
Penal 470 era um Papai Noel ‘refundador da República’ aposta nessa
hipótese.
Ademais, caberia perguntar ao zelo dos cínicos: o que seria de
respeitáveis representantes das ‘classes dirigentes’, inclua-se alguns
proprietários do oligopólio midiático, se fossemos levar a coisa a
sério? Por exemplo, rebobinar a história do país –os crimes hediondos
cometidos pela ditadura, digamos– com base nesse esteio do ‘domínio do
fato’, assim proclamado com gula por bocas obsequiosas? Passemos.
O fato é que 24 horas antes de a Corte Suprema esterilizar suas
responsabilidades no conveniente lança-chamas germânico, o criador do
conceito, no pé da página A6 da Folha, como lembra Janio, abjurou o uso
bastardo de sua criação.
“A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o
domínio do fato” –sublinhou Claus Roxin, entre vírgulas, na mencionada
entrevista que há 15 dias aguardava publicação na gaveta do jornal. E
reiterou em límpida advertência: “O mero ‘ter que saber’ não basta”.
Coloque-se essa cena entrecortada à muitas vezes boçal, enfadonha, exibição de egos em desfile no STF.
Contraponha-se a nitidez cuidadosa do jurista às frases
hermeticamente recheadas de nada, transbordantes de gerúndios, para
aderir ao atropelo das provas e sentenciar apesar e acima disso. Corte
rápido para o gozo explícito dos interesses ecoados sem pejo nem pudor
no dispositivo midiático.
Eis um documentário à procura de um autor. Ele deve ser feito. Será feito.
Os doutos figurantes e os sabichões que plasmaram em conjunto um
script habilidosamente dotado de cadência e timming eleitoral, que em
nada fica a dever ao produto urdido por dramaturgos de novelas e
profissionais do marketing político, merecem esse espaço documental.
Terão nele o reconhecimento do labor patriótico embebido em seus
textos, frases e feitos, iluminados para sempre no devido compartimento
que merecem ocupar na história democrática brasileira.
O efeito será pedagógico e solene. Mas terá também uma dimensão risível pela cota do grotesco.
Quem não se lembra do filme “Annie Hall” de Woody Allen? Há ali uma cena que sugere a prefiguração desse entrecho lúdico.
Numa fila de cinema, um douto sabichão da Universidade de Columbia
pontifica cataratas de sapiência hermética, ancoradas no manuseio
legitimador das teorias de Marshall McLuhan.Wood Allen e sua garota,
vivida por Diane Keaton, ouvem enfadados o buzinaço do ilustre
especialista.
Até que Woody resolve dar um basta e afronta a pompa pretensiosa com
algo do tipo: ‘Voce não entende nada do que está falando’. A eminente
autoridade então dá a carteirada mortal, algo do tipo: “Sou professor de
semiologia –da Colúmbia– e com doutorado em McLuhan!”
Allen dá dois passos na cena e introduz o compridão McLuhan; ele
mesmo em carne e osso. O canadense, autor de ‘O Meio é a Mensagem’ e do
conceito de ‘aldeia global’ , faz uma ponta para desmontar o falastrão
empolado com um sabão categórico: “Você não entendeu nada da minha
teoria”.
No filme, a intervenção de McLuhan reverteu o engodo feito de
palavrório anestesiante. No Brasil, a desautorização explícita do
criterioso Roxim foi desdenhada pela ignorância ou a má fé. E sua teoria
usada para consagrar um silêncio que ofende a consciência nacional: a
voz das provas.
Leia a seguir o texto de Janio de Freitas e assista ao trecho do filme ‘“Annie Hall” no link http://www.youtube.com/watch?v=OpIYz8tfGjY (sem legenda).
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