O destino dos reis
Miguel do Rosário, 18 dezembro 2012
A
última patacoada do STF, produzindo uma crise entre os poderes, me fez
pensar o seguinte: a observação diária da política brasileira é uma
atividade psicologicamente desgastante. Não seria melhor deixarmos pra
lá? Não seria melhor deixarmos que os debates políticos seguissem sem a
interferência nossa, nós, os liliputianos das redes sociais? Afinal, o
que ganhamos com isso a não ser insultos públicos lançados pela grande
mídia? Merval Pereira, por exemplo, volta meia tenta mexer com nossos
brios, ao descrever o movimento antihegemônico da blogosfera como fruto
de mais um mensalão petista. Um ministro do Supremo, Gilmar Mendes,
abriu processo contra um dos nossos, o querido ator José de Abreu. E os
homens mais ricos e poderosos do país perseguem nossas modestas
lideranças, que são os blogueiros que mais acessamos e gostamos,
tentando lhes destruir a golpes de chicanas jurídicas.
De vez em quando, passaríamos a
vista, furtivamente, na capa dos jornais; mas não arriscaríamos nossa
paz de espírito numa briga de gigantes que parece se dar tão longe do
cidadão comum.
A sensação é de total desamparo.
Temos um Congresso acovardado, um STF reacionário, uma mídia
extremamente agressiva e conservadora, um Executivo ausente e
silencioso.
Culminando esse processo, ainda
temos que lidar com uma nova modinha nas redes. Figuras posudas, uns por
ingenuidade, outros por arrogância, todos por vaidade, tentam chamar a
atenção elegendo a blogosfera “progressista” como inimiga, sondando-lhe
os mínimos tropeços para lhe causar danos. Estes formam uma espécie de
quinta-coluna: travestem-se de esquerda – de preferência ultra-esquerda –
para melhor servir ao status quo. Compreende-se, embora não se perdoa.
Sua postura lhes franqueia espaços na mídia, ou lhes granjeiam migalhas
de popularidade na web.
Não faríamos nada disso,
naturalmente, não fossem as compensações de ordem espiritual; ou para
usar um termo mais republicano, compensações de ordem moral e cívica. É
um tanto inexplicável, isso. Por outro lado, é algo perfeitamente
lógico. Afinal, não haveria nenhuma demanda por democracia não
possuíssemos, no interior de nós mesmos, este anseio por interferir e
controlar nosso próprio destino, não apenas individualmente mas também
socialmente.
Ah, a blogosfera. Já nasceu
decadente, esfarrapada, irritadiça, cansada! E no entanto,
incrivelmente, tornou-se a última aldeia gaulesa à resistir ao império
romano! Com blogs mal diagramados, gerenciados na maioria por indivíduos
com escassos conhecimentos tecnológicos, com designs cafonas, poluídos
por cores berrantes, propagandas inúteis (que não dão um centavo) e
quase sempre anunciando, com ingenuidade inacreditável, suas
preferências partidárias – eis a “rede de blogs” onde desembocam as
derradeiras esperanças do espírito democrático!
Não há como negar o heroísmo da empreitada!
Agora, por exemplo, lidamos com
aquele que, talvez, seja nosso maior desafio: entender os últimos
movimentos do xadrez político. A oposição conservadora-midiática, depois
de perder muitas peças com a derrota eleitoral no ano passado,
sobretudo em São Paulo, conseguiu mobilizar um poderoso ataque ao
instrumentalizar o julgamento do mensalão e seduzir a maioria dos
ministros do STF.
O editorial da
Folha, criticando o STF nessa última decisão, de cassar o mandato de
parlamentares, não passa de jogo de cena. O texto é confuso justamente
por isso. Uma crítica superficial, motivada antes pelo receio de que,
algum dia, o STF se insurja contra aliados, do que por uma preocupação
genuína com a quebra de um princípio basilar da nossa democracia: a
soberania do povo, que se corporifica na inviolabilidade do mandato de
um parlamentar.
Alguns lançam ataques vulgares. “O
Congresso estará desmoralizado se houver ali um representante condenado
pela justiça! Como explicar para o homem comum que um preso possa ao
mesmo tempo ser deputado federal!”
Ora, agora mesmo Elio Gaspari – que
joga em todos os times – nos contou que, recentemente (em 1998), a
justiça americana autorizou o condenado a prisão domiciliar Jay Kim, que
era deputado federal nos EUA, a apenas sair de casa para ir ao
Congresso, portando uma tornozeleira eletrônica! Na eleição seguinte,
foi cassado, como deve ser, pelos eleitores. A informação de Gaspari,
para início de conversa, desmente a grosseira observação de Joaquim
Barbosa, quando rebateu Lewandowski, dizendo que isso jamais aconteceria
nos EUA, porque, em virtude do poder dos “meios de comunicação”, o
parlamentar condenado renunciaria antes.
O medo dos ministros do STF e da
mídia é que algum parlamentar condenado use a tribuna para atacar a
lisura e imparcialidade do julgamento do mensalão. Entretanto, esta
tribuna foi concedida aos representantes do povo justamente para isso:
para que falem, para que expressem ideias que, erradas ou não, são o que
de melhor possuímos para avaliar a opinião soberana da população
brasileira.
A impressão que temos é que eles
ganharam essa batalha. Talvez tenham ganho mesmo. A paranóia em torno da
criação de uma frente golpista formada por mídia e judiciário, as
únicas duas grandes instâncias de poder que não são mediadas pelo
sufrágio universal, apenas se agravou.
Permitam-me, todavia, repetir um
clichê: é pouco antes do amanhecer que a noite parece mais escura. A
vitória deles foi pírrica, porque se desgastaram enormemente, enquanto
nós, os liliputianos, ganhamos força. E a nossa miséria, por sua vez,
ganhou uma nova injeção de nobreza, porque cresceu a nossa consciência
sobre ela. Como dizia Pascal: “O homem sabe que é miserável. Ele é,
pois, miserável, de vez que o é; mas é bem grande, de vez que o sabe.”
A gente agora tem uma consciência
agudamente dolorosa sobre nossa miséria, porque é realmente uma miséria
que o voto de mais de 140 milhões de eleitores de repente não valha mais
que a opinião arbitrária, truculenta e anticonstitucional de meia dúzia
de ministros do Supremo Tribunal Federal. Deparamos com uma terrível
falha democrática, e teremos desde hoje que lidar com mais esse perigo,
com mais esse adversário da vontade soberana do povo. Porque um STF
autocrático é como um rei absolutista. Se tivermos a sorte de haver
juízes bons e comprometidos com a democracia, bem estar social, harmonia
entre poderes e estabilidade política, nada melhor do que um STF
ultrapoderoso. Se calhar termos juízes corruptos, incompetentes ou
manipuláveis por uma mídia antitrabalhista, veremos o desenvolvimento do
mais refinado e canalha golpe de Estado da modernidade. Os exemplos de
Honduras e Paraguai nos mostram que esse tipo de golpe consegue,
facilmente, afirmar-se moral e politicamente, em vista dos apoios que
recebe dos poderosos conglomerados midiáticos latinos e do
ultrabilionário conservadorismo norte-americano.
Por isso, não adianta tentarmos nos
consolar com a esperança que Dilma indicará um juiz melhor que os
anteriores. O problema não é sobre o caráter em si dos juízes e sim
amarrar o destino de uma democracia aos altos e baixos de indivíduos que
não passaram pelo crivo salutar do sufrágio. Temos que ampliar e
oxigenar o STF. Adaptá-lo a uma democracia que é hoje quatro ou cinco
vezes maior do que há quarenta anos. É preciso discutir como aperfeiçoar
o STF, como deixá-lo mais democrático, fazer com que se torne o que
deve ser: uma instância em prol da democracia, e não um órgão frágil,
facilmente instrumentalizado por chantagens, ameaças e demais armas de
persuasão de grupos de mídia.
Nada mais divertido (embora
trágico), portanto, que esse golpe, gestado conscientemente por um lado,
mas sobretudo sem que os próprios protagonistas tenham noção exata do
que fazem (visto que se trata de um movimento natural dessa força
escura, brutal e totalitária que movimenta o capitalismo), nada mais
curioso que um punhado de blogueiros, com seus exércitos de talentosos
comentaristas, intervenha e atrapalhe seu desenvolvimento. A explicação é
que a força da blogosfera não reside em seus frágeis atores, mas na
justiça histórica que torna sua existência necessária. Quanto mais o
golpismo midiático se fortalece, mais se fortalecerá a sua sombra: o
antigolpismo democrático. É uma lei acima inclusive das leis, porque
fundamentada na fome de independência e liberdade do espírito humano, e
não numa sempre precária constituição escrita. Eles podem aplicar os
golpes que quiserem. Haverá sempre resistência. O destino dos reis é
perderem suas cabeças.
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