Tarso Genro, na Carta Maior (copiado do sítio Viomundo)
Na introdução ao seu “Berlim Alexanderplatz” (1929) o grande escritor
Alfred Döblin, da mesma estatura intelectual — artística e moral — de
Thomas Mann, disse que escrevia um livro sobre o personagem Franz
Biberkopf, que representava os que habitam uma pele humana e com os
quais acontece “querer mais da vida do que pão e manteiga”.
Lembro esta passagem lapidar da introdução de Döblin, porque sendo
parte do grupo de dirigentes históricos minoritários no PT — desde a
época que ocorreram os fatos que originaram a Ação Penal 470 — e tendo
assumido a presidência do Partido num momento difícil da sua existência
afirmei, em diversas oportunidades, que nenhum partido era uma
comunidade de anjos. O que era afirmar o óbvio num momento em que dizer o
óbvio parecia uma agressividade contra o meu próprio Partido.
Passados vários anos daquele fato e quase terminado o julgamento
daquela Ação Penal, é bom retomar o fio da história presente para
refletir, no período que se convenciona planejar o “ano novo”, sobre o
futuro da esquerda e do PT. Pensar também sobre o futuro do nosso país,
que nos últimos dez anos vem sofrendo grandes transformações
econômico-sociais.
Brasil novo sujeito político no cenário mundial; Brasil tirando da
miséria 40 milhões de pessoas; Brasil com os sindicalistas, os
“sem-terra”, “sem teto”, “sem emprego”, sentados na grande mesa da
concertação e da democracia; Brasil do Prouni, do Fundeb, da
reestruturação das funções públicas do Estado; Brasil do baixo
desemprego, inflação baixa e juros baixos; Brasil da nova Política de
Defesa; Brasil da classe média ampliada e de melhores salários no setor
público e privado; Brasil da Polícia Federal que age — em regra —
segundo a Lei e a Constituição.
Brasil em que todas as instituições do Estado cometem seus erros e acertos dentro das regras do jogo constitucional.
É ingenuidade perguntar qual o Brasil que transita no debate
político: este, descrito acima, ou o Brasil da Ação Penal 470? Ou
melhor, porque o Brasil que se debate é predominantemente o da Ação
Penal 470 e não o Brasil legado, até agora, pelo centro progressista e
pela esquerda, sob a hegemonia do Partido dos Trabalhadores? Quem compôs
esta agenda e por que ela é agenda hegemônica? As respostas a estas
perguntas serão a base da compreensão dos partidos sobre o que ocorrerá
bem além de 2018.
Aponto dois motivos básicos, que são fortes para manter a Ação Penal
470 — e a manterão por muito tempo — como o centro de todas as
estratégias políticas da direita, em geral, e da oposição midiática, em
particular. O primeiro motivo é que, através da judicialização do
processo político, poder-se-á criar a ilusão que é possível escrever um
novo Brasil — mais decente e mais democrático — por fora da política,
logo, principalmente através de decisões do Poder Judiciário, que é
pouco influenciável pelos movimentos sociais populares e muito
influenciável pela “opinião pública” da mídia conservadora.
O segundo motivo, ligado ao primeiro, é que este “deslocamento” da
luta política para o âmbito do Judiciário poderá funcionar como uma
alternativa à hegemonia do PT e da esquerda no âmbito eleitoral, já que a
oposição conservadora, que sucateou o Brasil quando esteve no poder
(representada pelo demo-tucanato) não ofereceu, até agora, nenhuma
esperança de poder nos próximos anos. Assim, o Poder Judiciário, erigido
— como está sendo proposto — à condição de grande menestrel da moral
pública e da ética política, poderá transformar-se no centro político da
vida política nacional, esvaziando a luta ideológica, programática e
política, entre os partidos, nos movimentos e no Parlamento.
É construída, desta forma, a substituição dos Partidos, do Parlamento
e dos movimentos sociais, pelo Poder Judiciário, através deste processo
de “judicialização da política”. Sobre esta judicialização, o voto
popular não pode exercer nenhuma influência direta ou visível, pois
sobre o Poder Judiciário os jogos de influência são absolutamente
restritos, totalmente elitizados e manipuláveis por poucos grupos
sociais, o que, aliás, é normal em todas as democracias do mundo, como
sempre analisava e reconhecia o mestre Norberto Bobbio.
Assim, a Ação Penal 470 continuará sendo — se o Parlamento e os
Partidos não reagirem com reformas sérias que deem mais dignidade ao
fazer político democrático — o centro do debate pautado pela mídia e
pela direita anti-Lula. A oposição partidária não conseguiu — ao longo
destes oito anos — configurar um projeto alternativo convincente em
torno da hegemonia do capital financeiro, pois os interesses
empresariais que lhes davam sustentação plena — tanto locais como
internacionais — não estão mais unificados pela pauta neoliberal.
O surto de crescimento e desenvolvimento das forças produtivas no
país, durante os governos Lula, e a crise aguda do modelo neoliberal na
Europa, que prosseguiram com o governo da Presidenta Dilma, abalaram
esta unidade.
A unidade foi possível até a situação de crise que levou o país ao
Plano Real, cujo resultado no desenvolvimento econômico, foi marcar
regras mais claras para que os agentes econômicos pudessem planejar o
futuro em torno de uma moeda estável, também retirando do Estado as
condições de manipular o seu planejamento financeiro, utilizando a
inflação. Como o PT e a esquerda foram protagonistas essenciais do
período pós-real, no qual ocorreram formidáveis mudanças sociais e
econômicas, é natural que tanto o Partido como os seus dirigentes sejam
alvos de uma forte tentativa de neutralização dos seus méritos, através
da exacerbação de seus defeitos ou limitações.
Mas estes, como se sabe, não são somente originários de condutas
individuais estimuladas pelo sistema político atual e pela história
pouco republicana do Estado brasileiro, mas também fazem parte, em maior
ou menor grau, das “regras do jogo” de qualquer democracia. Refiro-me,
aqui, às condutas que são formas não transparentes de promoção de
políticas de estado, não aos delitos que sejam cometidos em qualquer
época. Estes, os delitos, são normalmente de conta de Poder Judiciário,
mas é costumeiramente depois do seu julgamento que passam a integrar,
com maior ou menor intensidade, os debates eleitorais e as críticas que
os partidos assacam, uns contra os outros, para ressaltar a sua própria
autenticidade.
Os partidos democráticos e republicanos, independentemente da sua
ideologia específica, devem compartilhar da luta para reduzir ao máximo
estes aspectos perversos de qualquer democracia, sem criar a ilusão
cínica que um processo judicial — seja ele qual for e contra quem for —
terá a capacidade de iniciar uma “era de fim da impunidade”. Criar a
ilusão de que iniciaremos, com qualquer processo judicial, uma era de
“fim da impunidade”, é criar condições políticas para que, se a oposição
atual chegar ao poder, por exemplo, ela não seja punida pelos seus
erros e delitos, porque a Ação Penal 470, afinal, já fez “a limpeza
necessária no país”, o que é uma supina fraude informativa.
Vou mencionar dois fatos midiáticos típicos, que simbolizam todo um
período de luta política no país, que certamente serão arrolados aos
milhares em teses acadêmicas futuramente apresentadas a bancas
especializadas, o que ocorrerá certamente nos próximos dez anos. O
primeiro, apoia-se numa entrevista concedida pelo meu especial amigo,
ministro Ayres Britto — diga-se de passagem, ministro honrado e
qualificado intelectualmente — que diz (Zero Hora
23.12.12 pg. 8): “O que estamos aqui julgando é um modo espúrio,
delituoso, de fazer política. A política é mais importante atividade
humana no plano coletivo.”
A afirmativa constante nas declarações do ministro Britto, que
sintetiza muito bem a posição do Supremo na Ação Penal 470, elege um
ponto de partida perigoso para orientar julgamentos numa Corte Suprema
que é sim, também, uma Corte política.
É uma Corte, porém, que não tem poderes para julgar “o modo de fazer
política”, logo a própria política — que é feita de diferentes modos em
distintos contextos históricos — e que é uma “atividade humana
coletiva”, como bem diz o ministro Ayres Britto. Os poderes que são
dados ao Supremo pela Constituição, em processos criminais, são para
julgar comportamentos devidamente individualizados pelo Ministério
Público, como determina a Constituição.
Aceitar que o Supremo possa julgar a “política” é promover a
possibilidade de incriminações em abstrato de toda uma comunidade
partidária ou de governos, como é comum em regimes de força. A Suprema
Corte é uma corte política, porque seus julgamentos têm, muitas vezes,
largos efeitos políticos sobre vastos períodos históricos e porque, na
análise e na aplicação das normas, sempre pendem coordenadas políticas e
convicções ideológicas.
O Supremo não é uma Corte política porque seja o julgador da esfera
da política, pois esse tipo de julgamento, no Estado Democrático de
Direito, é prerrogativa do povo, em eleições periódicas. E do Parlamento
em procedimentos regulados. A conveniência política, por exemplo, em
liberar uma emenda parlamentar (destinada a promover um investimento
público numa região do país) visando uma votação da Câmara Federal, é
uma política encravada na formação da nossa República. É hábito
(negativo) do nosso sistema político, mas não constitui qualquer delito,
se a liberação for feita dentro das regras vigentes. Fisiologismo
parlamentar não é da órbita do Supremo: isso é política, em sentido
negativo, é má política; mas é política, usada por todos os governantes
para governar dentro da democracia.
Isso só pode ser desmontado por uma reforma política, não por decisões judiciais.
O Ministro afirmou, portanto, que “estamos julgando um modo de fazer
política”, o que implica em dizer que os fatos eventualmente delituosos
passam pelo juízo preliminar sobre o “modo de fazer política”. Isso é um
rotundo equívoco. Quem julga o “modo de fazer política” é o parlamento e
o povo: o parlamento em procedimentos regrados pela Constituição e pelo
Regimento Interno das Casas Legislativas e o povo em eleições
periódicas. Ou seja, posicionar-se o Juiz, no caso concreto, sobre a
“política que está sendo feita” — já tida pelo Magistrado como “espúria”
e “delituosa” — é restringir a ampla defesa.
A partir daquela convicção, o exame do comportamento individualizado
dos réus passa a ser secundário, pois eles são agentes “de um modo
espúrio e delituoso” de proceder: criminosos previamente identificados.
Assim, o indivíduo, como réu, subsome-se na criminalização da
política presumidamente feita pelo governo e não tem saída nem defesa. O
julgamento passa a ser principalmente o julgamento de um “modo de fazer
política”, que tanto envolve os réus — integrantes do coletivo político
considerado como espúrio e delituoso — como também todos os que
estiveram ligados, direta ou indiretamente, às políticas de governo.
Todos são culpados: inculpação em abstrato, que foi obrigada a buscar
algum tipo de sentido na interpretação ampliada do “domínio funcional
dos fatos”, para tentar justificar racionalmente as condenações.
O adequado às funções de uma Corte Superior em julgamentos desta
natureza é apanhar os fatos e atos (individualizados na denúncia do
Ministério Público) e contrastá-los com as normas que regulam as funções
dos agentes públicos. Este contraste é que possibilita a
criminalização, ou não, das condutas políticas dos indivíduos, através
do sistema de direito. Este é o sistema que dá ordem, materialidade e
previsibilidade ao sistema político e que pode promover tanto
julgamentos políticos nas esferas pertinentes, como consolidar juízos
públicos sobre partidos e indivíduos, com influência nos processos
eleitorais.
A partir deste percurso, da quantidade das pessoas envolvidas nos
delitos, da gravidade das violações legais e dos efeitos destas, sobre
as funções públicas do estado, é que uma política de governo, no seu
conjunto, pode ser taxada como “espúria” e “delituosa” e daí julgada
pela soberania popular.
O que se constata, em contradição com os fundamentos da sentença da
Ação Penal 470, é que o “modo de fazer política” do governo Lula (que na
verdade não estava formalmente em julgamento na ação referida) levou o
Brasil a um formidável progresso social e econômico, a um avanço
democrático extraordinário, a um prestígio internacional inédito, que
coloca o cidadão comum na velha disjuntiva: é melhor ter um governo que
tenha um modo “espúrio” e “delituoso” de fazer política, que nos consiga
tudo isso, ou um governo inepto, mas sério, no qual nós continuamos na
marginalidade histórica e social?
Como a disjuntiva promovida pela decisão do STF é falsa, o cidadão
comum — que é o principal objeto da manipulação midiática em torno do
julgamento — responde por instinto de classe e pelo princípio da
aparência imediata (“de onde vêm estes ataques?”): “prefiro o Lula e
agora a Dilma, pois alguém está certamente me enganando nesta história
toda”. E assim começam as pessoas a prestar atenção em quem serão os
beneficiados pela eliminação da memória popular dos governos do
Presidente Lula e do seu suposto modo de fazer política.
A razão histórica de caráter udenista do Supremo, julgando uma
política “espúria” e não os réus, torna-se uma contribuição para uma
razão cínica imediata, erguida sob premissas falsas (“prefiro” — pensa o
povo — “quem rouba, mas faz”), mas a seguir se refaz como
autoconsciência do protagonismo democrático do povo: “vamos reeleger a
nossa Dilma, porque ela é uma boa continuadora do nosso Lula”.
Uma oposição sem rumo e sem propostas recebeu de presente um processo
de judicialização da política, feito dentro da ordem jurídica e
política atual, compartilhado pelo esquerdismo travestido de UDN
pós-moderna. Não tinha como aproveitar, pois estava envolvida demais com
o fetichismo neoliberal, com suas divisões internas, com a sua ausência
de compreensão do país e do seu povo.
O segundo fato, ao qual quero referir, merece menos reflexão, mas não
é menos significativo. Num dia desses, às 7h34 da manhã, na Globo News,
a simpática Cristiana Lobo anunciava o seguinte, literalmente: “A CPI
do Cachoeira não termina, enquanto isso o bicheiro ganha liberdade”.
Atenção, a “culpa” do suposto delinquente ter saído da prisão não é
decorrente de uma decisão do Poder Judiciário, que já estava condenando
dirigentes petistas a pesadas penas, num processo altamente politizado. A
culpa, sugere a notícia, foi da CPI, que é dirigida por um petista, que
ainda não terminara certamente o seu trabalho “espúrio”.
A culpa é, pois, da política e dos políticos, parece badalar o oposicionismo sem rumo.
Em todo este contexto, a Ação Penal 470, que poderia ser um grande
marco de afirmação do Poder judiciário e de ressignificação da política
em nosso país, tornou-se predominantemente uma arena de desgastes
tentados contra Lula, a esquerda e o PT, como partido que lidera este
formidável processo de mudanças no país: a judicialização da política
despolitizou a oposição e empobreceu, ainda mais, nosso sistema político
já falido.
É certo, porém, que esta ação penal não é apenas fracasso, o que
poderá ser testado com os próximos processos que já estão em curso, que
certamente não terão o mesmo interesse midiático que esta ação
despertou. Mas ela incidiu largamente sobre o futuro do país e
reorganizou a pauta dos partidos e da mídia: hoje a questão já é “o que
faremos em 2018?” O “esquema” visivelmente não deu certo: Dilma, Lula e o
PT, vão ganhar as eleições em 2014 pelo que já legaram ao país. Com
isso, não estou dizendo que o Poder Judiciário entrou em algum esquema
previamente concebido, mas que foi devidamente instrumentalizado e
“aceitou” esta instrumentalização ora falida.
Trata-se, agora, nós da esquerda e do PT, de nos prepararmos para as
próximas eleições de 2014 com Dilma, mas inaugurando uma nova
estratégia. Descortinando — já a partir das próximas eleições
presidenciais — os traços largos e os largos braços de um programa
destinado a reestruturar a democracia brasileira, para mais democracia
com participação cidadã, mais transparência com as novas tecnologias
infodigitais, mais combate às desigualdades sociais e regionais.
Sobretudo partindo da compreensão que todos “querem mais da vida do que
pão e manteiga”, como dizia Döblin do seu personagem.
O fim da miséria, que já está no horizonte, é impulso para exigências
mais complexas por parte de todo o povo e isso exige, também, um
partido dirigente que supere os velhos métodos de direção tradicionais,
que normalmente são apenas reativos às conjunturas às vezes difíceis,
que atravessam os seus líderes: um partido que trate o cotidiano como
tal, mas pense no processo e na História. Pensar em 14 pensando em 18.
Neste ano de 2018, independentemente da qualidade dos nossos governos, o
sentimento de renovação já estará em pauta no Brasil, face às próprias
transformações que engendramos nos quatro governos seguidos, que
provavelmente já teremos protagonizado no país.
Pensar assim é tarefa do Partido, não é tarefa de governo. A menos
que abdiquemos da nossa função de sujeito político e passemos a ser um
escritório de explicações sobre o passado. Se o nome “refundação” ainda
fere, por equívoco, ouvidos mais sensíveis, falemos em renovação de
fundo e de forma. Não para fugir das nossas raízes, mas para ancorá-las
no presente das novas classes trabalhadoras, das novas classes médias,
das novas formas de produzir, prestar serviços e distribuir riqueza, dos
novos mundos da economia criativa, das novas formas de produção da
inteligência, dos novos estatutos de relacionamento global, das novas
demandas que não são necessariamente de classe, mas ingredientes básicos
de uma sociedade justa e, sobretudo, mais e mais feliz.
O nome disso é “novo socialismo” ou “nova social-democracia”: isso quem decide não é o partido.
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