Paulo Moreira Leite 17/11/2013
Condenados a prisão em regime semiaberto, José Genoíno e José Dirceu enfrentam tratamento inadequado
A prisão de 11 condenados do
mensalão foi acompanhada de momentos preocupantes. Procurando as raízes
do que está acontecendo, é possível chegar a articulações conservadoras
que se mobilizavam contra os direitos humanos e garantias individuais –
quando a democratização do país sequer completara seu curso. Vamos
contar a história pelo começo, porém.
Ao serem conduzidos para o
presídio da Papuda, José Dirceu e José Genoíno estão sendo submetidos ao
regime fechado, quando deveriam cumprir pena por regime semiaberto.
A medida já provocou
protestos formais dos advogados, para quem os condenados não poderiam
permanecer mais do que 12 horas seguidas na prisão.
É realmente inaceitável
levar os presos para um estabelecimento que não possui instalações onde
possam cumprir a pena nas condições definidas na própria pena atribuída
pelo STF. O que se quer: um passeio de avião, novas fotos e imagens?
Em condições normais, me
diz um dos advogados dos réus, uma atitude desse tipo se resolveria com
um habeas-corpus, capaz de levar a libertação imediata dos prisioneiros.
Mas é difícil pensar que
vivemos tempos normais quando o presidente do Supremo afirma que “quando
as instituições se degradam, o País se degrada”, não é mesmo?
Outro drama envolve a
saúde de Genoíno. Ele sofre de cardiopatia grave. Recentemente ficou no
limite entre a vida e a morte, da qual escapou, segundo médicos, por uma
questão de minutos, a bordo de uma ambulância que o conduziu a um
hospital. Com base na avaliação médica, Genoíno já entrou com pedido de
aposentadoria na Câmara de Deputados.
Transportado de São Paulo para Brasília, o deputado enfrentou situações complicadas, descreve uma reportagem do UOL:
“Ainda no aeroporto de
Congonhas (SP), minutos antes de entrar na aeronave, o ex-presidente do
PT foi examinado por um médico da PF que emitiu um laudo informando que
ele tinha plenas condições de fazer a viagem.
No entanto, antes de chegar a
Belo Horizonte, onde embarcaram mais sete presos, entre eles o
empresário Marcos Valério, Genoíno se sentiu mal devido à pressão alta.
Quando a aeronave pousou em BH, às 15h17, uma ambulância ficou
estacionada na pista e Genoíno foi medicado. Por essa razão, o voo
decolou para Brasília com um pequeno atraso.
Procurado para comentar o
ocorrido, Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do setorial jurídico do
PT e um dos advogados que acompanhou Genoíno desde ontem, afirmou que o
presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Joaquim Barbosa, "assumiu
o risco de conduzir José Genoíno a Brasília, mesmo em virtude do estado
clínico que o acomete, o que comprova os excessos na condução do
mandado de prisão".
Temos então, dois absurdos
acumulados. Para levar Genoíno para um presídio onde não é possível
cumprir a pena que recebeu, ele foi conduzido a uma viagem em situação
de risco e teve de ser medicado.
Qual a necessidade?
Do ponto de vista do cumprimento correto das penas, nenhuma. A razão é política.
O grave é que o tratamento
inadequado, estimula cenas agressivas de cidadãos contra condenados,
como aconteceu no momento em que eram conduzidos em São Paulo ou Belo
Horizonte, repetindo situações que já haviam ocorrido nas eleições de
2010 e 2012, atingindo até mesmo o ministro Ricardo Lewandovski.
Não vamos entrar no mérito das
conclusões do julgamento. Nem no conteúdo das denuncias que levaram a
produção de penas altíssimas. Já discuti isso várias vezes.
Mas eu acho óbvio que este comportamento agressivo recebe estímulos de cima.
Num recurso de marketing primário, as prisões foram realizadas no dia da proclamação da República.
Mesmo que os condenados fossem
culpados de todos os crimes que lhes são atribuídos – hipótese com a
qual estou em desacordo absoluto – eles têm direito a um tratamento
respeitoso.
Não é difícil associar essa
situação com o ambiente criado no STF pelo presidente/relator Joaquim
Barbosa. Seu comportamento agressivo e truculento em relação a colegas é
um fato amplamente conhecido.
O problema é que essas reações
agressivas não envolvem, apenas, uma questão de comportamento e boas
maneiras. Implicam, também, num gestual pouco civilizado, de alto grau
de violência – ainda que simbólica – que intimida e até silencia seus
interlocutores.
Na última sessão do STF, o
ministro Teori Zavaski só precisou questionar uma proposição de Joaquim
Barbosa para ser acusado de cometer uma “chicana”, expressão que,
conforme Houaiss, pode ser equivalente a “tramoia”, enquanto
“chicaneiro” é definido como “trapaceiro.”
No mesmo dia, numa reação
típica de quem sentia-se intimidada depois de expressar uma diferença em
relação às opiniões de Barbosa, uma das ministras chegou a exibir
gestos infantilizados para esclarecer que eram divergências ínfimas.
Sendo quem é – representante de
um dos poderes da República – esse comportamento se transmite,
naturalmente, a várias camadas da sociedade.
Outros fatores contribuem na
mesma direção. Envolvidos diretamente na produção das denuncias que
alimentaram o escândalo, a maioria dos meios de comunicação tornou-se
parte interessada no caso.
A dificuldade é que oito anos
depois das primeiras notícias, continua apresentando os fatos da ação
penal 470 como se toda a verdade se encontrasse nas manchetes de 2005. A
realidade é que de lá para cá surgiram fatos novos e descobertas
consistentes, que podem colocar em dúvida a versão inicial.
Para um esquema que teria
desviado R$ 73,8 milhões do Banco do Brasil, uma auditoria da própria
instituição assegura que não houve desvio de dinheiro público.
Contra a visão de que o esquema
se baseava em empréstimos fraudados, a Polícia Federal apurou que os
empréstimos do Banco Rural para o PT envolviam recursos verdadeiros, que
foram usados para pagar despesas do partido e, mais tarde, quitados.
Um levantamento simples nos
gastos de publicidade mostra que os próprios meios de comunicação
receberam grande parte das verbas que teriam sido desviadas. Grupos como
Globo, Folha, Estado, Abril e quem mais você lembrar das empresas de
comunicação do país estão entre os principais destinatários. O
departamento comercial dessas empresas jamais negou o recebimento destes
recursos, especialmente volumosos.
Nesta situação, para tentar
entender e avaliar o que se passou no tribunal, a maioria dos
brasileiros só pode interpretar a coreografia dos ministros.
Não faz ideia de que juristas
de valor reconhecido têm críticas a seus resultados e questionam boa
parte das condenações. Não compreende que existem argumentos sólidos,
que permitem acreditar na inocência absoluta dos condenados em relação
aos crimes pelos quais foram condenados.
A truculência ajuda a criar uma
novilíngua, onde o direito é visto como privilégio e toda tentativa de
resistir a decisões que podem ser classificadas como abusivas e
arbitrárias não passa de um esforço para garantir uma posição superior
na vida social.
Argumentos sensatos, bem
fundamentados, são desqualificados e descartados como se não envolvessem
um direito fundamental da existência humana, a liberdade.
Essa visão ajuda a formar a
convicção popular, assinalada por Hanna Arendt ao estudar a emergência
de processos totalitários na Europa dos anos 20 e 30, de que “os atos de
violência podiam ser perversos, mas eram sinal de esperteza.”
Falando sobre o universo mental daquele tempo, ela assinala que “o mal, em nosso tempo, tem uma atração mórbida.”
Não é um problema novo para os brasileiros, na verdade.
Em 1987 professor Antônio
Flávio Pierucci (1945-2012) fez uma pesquisa antropológica nos bairros
de classe média de São Paulo, que deixou ensinamentos úteis para o
Brasil de 2013.
Num texto chamado As Bases da
Nova Direita, o professor assinalava que esta parcela influente de
cidadãos já olhava com desconfiança para os primeiros avanços da
democratização.
O país sequer havia votado em
eleições diretas para presidente, a violência da tortura e das execuções
de presos políticos fazia parte da memória muito recente, mas era
possível registrar sinais de inconformismo com a nova situação. O motivo
era uma política de direitos humanos lançada em São Paulo pelo
governador Franco Montoro, um dos patronos do PSDB, num esforço para
enfrentar e controlar atos da violência policial contra a população
pobre e contra presos comuns.
Pierucci apontava para desvios
de comportamento típicos: um gosto especial por autoridades capazes de
tomar medidas violentas e abusivas; a dificuldade de compreender que os
direitos à dignidade e o respeito a lei precisam valer para todos –
inclusive para pessoas condenadas pela Justiça – sob o risco de, aí sim,
ser razoável falar em “degradação das instituições.”
Pesquisando a visão de mundo
dessas pessoas, Pierucci anota: “Querer vê-los tendo arrepios, é
pronunciar as palavras direitos humanos. Diante de uma pergunta dessas,
eles e elas se inflamam, se enfurecem,” escreve.
“É interessante e decepcionante
que a associação primeira do sintagma direitos humanos seja com a ideia
de ‘mordomia’ para os presos. ‘’
Sempre citando palavras
recolhidas junto a homens e mulheres daquela época, o professor relata
que, na visão dessas pessoas, o país assistia a uma “inversão de
valores.”
Elas dizem que, enquanto o
bandido é “endeusado, embora seja assassino, seja estuprador, seja o
diabo”, e precisa de um “banhozinho de sol, precisa de champanhe
francês, precisa de mulher”, o “policial é massacrado. Se ele dá um tiro
por acaso, ele é massacrado e o bandido não, é exaltado.”
Já em 1987, o professor
antecipava: “a nova direita prima por diagnosticar a crise do presente
como uma crise primeiramente cultural, uma crise de valores e de
maneiras. Crise moral.”
Afirma Pierucci, ainda: “No
Brasil metropolitano, há um acúmulo de tensões de toda ordem
extremamente propício à arregimentação de cruzadas moralistas.”
É curioso observar porém que, um quarto de século depois, assistimos a um lamentável nivelamento por baixo.
O país e todos os seus governos
não apenas fracassaram no esforço necessário para enfrentar abusos
inaceitáveis contra a população pobre, resistindo a toda proposição
capaz de democratizar o aparato policial em atividade.
Através da criminalização da
atividade política a partir de uma visão moralista da atividade
política, um dos traços fundamentais da ação penal 470, convive-se
agora com abusos contra homens públicos, com biografia respeitável e um
histórico de valor.
Mesmo que Dirceu e Genoíno
fossem culpados de todos crimes que lhe são atribuídos – o que está
longe de demonstrado para além de toda dúvida razoável, como define a
tradição do Direito – não há motivo para justificar qualquer falta de
respeito.
Mas é isso o que acontece.
Temos comentaristas pródigos na produção de frases marotas de lamento
diante das oportunidades perdidas para humilhar, envergonhar e machucar –
até fisicamente – os condenados. Mesmo regras, criadas pelo próprio
STF, que limitam bastante o uso de algemas no momento da prisão, são
criticadas, nem sempre com a sutileza que se poderia imaginar.
Os condenados não se
“apresentaram” a polícia, dizem. Se “entregaram,” expressão que procura
esconder toda tentativa de preservar a própria dignidade numa hora tão
difícil para toda pessoa que tem a força do Estado contra si.
Como bons “chicaneiros,” apenas “querem ganhar” tempo e “protelar”.
Sempre lembrando que se vive
num país onde os direitos humanos são uma meta que nunca esteve ao
alcance maioria da população, o que se assiste é uma regressão
histórica. Num país que não avançou o suficiente, anda-se para trás.
O abuso e a falta de respeito não apontam para o progresso. Ajudam estimular e saciar o ressentimento.
Explicando o sentido das
execuções públicas nas sociedades europeias do século XVII e XVIII,
quando pessoas eram torturadas em praça pública antes de perder a vida, a
historiadora Lynn Hunt explica na obra A Invenção dos Direitos Humanos
que aquele espetáculo mórbido tinha objetivos políticos claros: “as
dores do corpo não pertenciam inteiramente à pessoa condenada
individual. Essas dores tinham propósitos mais elevados de redenção e
reparação da comunidade.”
Falando do comportamento da
população, observadores mencionados por Hunt observam que havia no
rosto da plateia uma “espécie de Alegria como se o espetáculo que tinham
presenciado lhes proporcionasse Prazer em vez de Dor.”
Ela também cita o jornal
Morning Post que critica a “indecência extremamente desumana” de uma
“multidão impiedosa”, que gritava, ria e agredia aqueles “poucos que
manifestavam uma compaixão apropriada pelas desgraças de seus
semelhantes.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário