Maria Inês Nassif 15/11/2013
O STF tornou-se um bunker incrustado no coração da democracia, que
mais colabora para manter as deficiências do sistema político do que
para saná-las.
Escrevo com atraso a segunda coluna sobre as dificuldades da oposição
partidária brasileira (leia aqui a primeira, O canto do cisne do PSDB e
do DEM), mas isso pode ter sido providencial. Coincide com a decisão do
Supremo Tribunal Federal (STF) de decretar a prisão dos condenados do
chamado Mensalão sem o trânsito em julgado de toda a ação.
As pessoas que concordam com a intromissão do STF em assuntos que a
Constituição define como de competência do Legislativo dizem que os
ministros do STF legislam porque o Congresso não cumpre a sua função. Se
for possível sofismar sobre essa máxima, dá para concluir que o STF age
como oposição porque os partidos políticos, que deveriam fazer isso,
não conseguem atuar de forma eficiente e se constituírem em opção de
poder pelo voto.
O Supremo, na maioria das vezes em dobradinha com o Ministério
Público, tem atuado para consolidar um poder próprio, que rivaliza com o
Executivo e o Legislativo, isto é, atua em oposição a poderes
constituídos pelo voto. Tornou-se um bunker poderoso incrustado no
coração da democracia, que mais colabora para manter as deficiências do
sistema político do que para saná-las; e que mais se consolida como uma
instância máxima de ação política do que como uma instituição que deve
garantir justiça.
Essas afirmações não são uma opinião, mas uma constatação. O STF, nos
últimos 11 anos, a pretexto de garantir direito de minorias, legislou
para manter o quadro partidário fragilizado nas ocasiões em que o
Legislativo – que não gosta muito de fazer isso – tentou mudá-lo. Como
magistrado, seleciona réus e culpados e muda critérios e regras de
julgamento para produzir condenações e dar a elas claro conteúdo
político. O julgamento do caso do chamado Mensalão do PT foi eivado de
erros, condenou sem provas e levará para cadeia vários inocentes. Casos
de corrupção que envolvem partidos de oposição caminham para a
prescrição.
Como legislador, o STF derrubou as tentativas do Congresso de fazer
valer as cláusulas de barreira para funcionamento dos partidos no
Legislativo, votadas pela Constituinte de 1988 e que foram adiadas ao
longo do tempo. Elas serviriam para “enxugar” o quadro partidário das
legendas de aluguel.
Em 2008, o Supremo referendou decisão do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE), de que perderia o mandato o político que, eleito por um partido,
migrasse para outro depois da eleição. Embora teoricamente defensável, a
decisão de obrigar políticos eleitos à fidelidade partidária apenas
fechou a porta usada regularmente pelo políticos para reacomodação do
quadro partidário depois das eleições, ou de interesses políticos nas
vésperas de um novo pleito.
Num sistema político-partidário imperfeito como o brasileiro, a
possibilidade de trocar de legenda era fundamental para o político. Dada
a dificuldade dos políticos eleitos por partidos tradicionais de
sobreviver sem o apoio do governo federal, era comum que, empossado um
novo governo, houvesse uma migração de políticos oposicionistas para
partidos da base aliada. Isso manteve inalterado o número de partidos
por um bom par de anos, embora em número excessivo; e dava um certo
fôlego aos novos governos para compor maiorias parlamentares cuja
ausência, num sistema político como o brasileiro, poder inviabilizar um
governo.
Na ausência dessa brecha, e sem que houvessem mudanças no sistema
político que tornassem adequadas as punições para infidelidade
partidária, a decisão do STF escancarou outra porta: abriu uma única
exceção para a migração parlamentar, a criação de um novo partido. O PSD
foi criado pelo grupo do ex-prefeito Gilberto Kassab em 2010, logo após
as eleições, para dar uma alternativa aos integrantes do DEM que
constataram que a desidratação eleitoral do ex-PFL naturalmente levaria o
partido à extinção, mesmo com o nome novo; e que passar mais quatro
anos na oposição, para a maioria dos políticos que lá estavam, também
era uma sentença de morte. O PSD foi uma acomodação pós-eleitoral. A
criação do Solidariedade e do PROS (e da Rede também, se o partido de
Marina Silva tivesse obtido registro no TSE) serviram à acomodação
pré-eleitoral no quadro partidário.
Se tudo continuar como está, os períodos de reacomodação das forças políticas sempre exigirão a criação de novas legendas.
O STF foi o artífice de um novo processo de pulverização partidária
que certamente tornará mais frágil o quadro partidário e mais deficiente
a ação legislativa. E tem inibido o Congresso de legislar sobre
partidos e eleições, quase que fixando os dois temas como reserva de
mercado do Judiciário. A decisão do ministro Gilmar Mendes, este ano, de
sustar a tramitação de um projeto no Legislativo que impedia ao
parlamentar que mudasse para outro partido levar junto o seu
correspondente em Fundo Partidário e horário eleitoral gratuito (que
ficaria com o partido pelo qual foi eleito), foi uma barbaridade
jurídica que, se não tinha muito futuro no plenário do SFT, surtiu o
efeito de intimidar o Parlamento de seguir adiante.
Diante desses fatos, é possível concluir, sem margem de erro, que não
apenas os interesses dos integrantes do Congresso estão em desacordo
com uma reforma política. Um risco igualmente grande de fracasso de uma
mudança legal efetiva no sistema partidário e eleitoral reside no Poder
Judiciário.
No caso do Mensalão, o STF não julgou. Os réus já estavam condenados
antes que o julgamento se iniciasse. O hoje presidente do tribunal e
relator da ação, Joaquim Barbosa, deu inestimável ajuda para que isso
acontecesse. A orquestra tocou rigorosamente sob sua batuta, salvo o
honroso desafino do revisor da ação, Ricardo Lewandowski. Seria louvável
se o julgamento servisse para mostrar à sociedade que até poderosos
podem ser condenados, se o processo não deixasse dúvidas de sua intenção
de fazer justiça. As condenações, todavia, foram fundamentadas em erros
visíveis a olho nu. É um contrassenso: para fazer a profilaxia
política, condena-se culpados, inocentes e quem estava passando por
perto mas tinha cara de culpado.
Basta uma análise breve do julgamento para constatar que, não se sabe
com que intenção, Barbosa construiu uma acusação sobre um castelo de
cartas: como precisava existir dinheiro público para que a acusação de
desvio de dinheiro público vingasse, forjou o ex-diretor de Marketing do
BB, Henrique Pizzolato, como o “desviador” de uma enorme quantia do
Fundo Visanet, que não era público e que não foi desviado. Pizzolato vai
para a cadeia sem que em nenhum momento, como diretor de Marketing,
tivesse poder de destinar dinheiro do fundo. É uma situação tão absurda
que as campanhas contratadas pela agência DNA, que servia por licitação
feita no governo anterior ao Banco do Brasil, foram veiculadas pelos
maiores órgãos de comunicação, que continuam a falar do desvio embora o
dinheiro tenha entrado no caixa de cada um deles.
O STF considerou que a culpa de José Dirceu dispensava provas e que a
assinatura de José Genoíno, então presidente do PT, num empréstimo
feito pelo partido, que foi quitado ao longo desses anos e considerado
legal pelo TSE na prestação de contas do partido, tornava o parlamentar
culpado. Foram decisões politicamente convenientes e aplaudidas por isso
por parcela da população. Esse foi um erro cometido pela elite
brasileira, um grande erro – e torço para que ela perceba isso a tempo.
Condenar sem provas e sem evidências, quando o STF é a instituição que
condena, pode se tornar uma regra, não uma exceção. Qualquer brasileiro
poderá estar sujeito a isso a partir de agora. A visão subjetiva dos
ministros do STF terá o poder de prevalecer sobre qualquer fato
objetivo.
Esses dois padrões de decisão do STF só podem ser entendidos se
tomados conjuntamente. São ações que dão sobrevida aos partidos de
oposição, ao manter o partido do governo sob constantes holofotes, de
preferência em vésperas de eleições; e ao mesmo tempo mantém os partidos
enfraquecidos por constantes intervenções em leis eleitorais e
partidárias, o que dá à mais alta Corte brasileira poder constante de
intervenção sobre assuntos político.
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