sábado, 4 de maio de 2013

ANTONIL E O PADECIMENTO DA CANA

Uma vez que hoje, 13/03/13, foi eleito um papa que é jesuíta, lembrei-me de dois outros padres pertencentes à Companhia de Jesus que viveram no Brasil colonial e encararam a produção da principal riqueza do país com olhares bastante diversos. Sobre os dois jesuítas Alfredo Bosi na sua obra magistral "Dialética da Colonização" assim os apresenta:

"Comparado com o 'piccolo mondo' de Gregório, sátiro e cronista das mazelas da Bahia, o universo de Vieira se mostra mais largo. Jesuíta, conselheiro de reis, confessor de rainhas, preceptos de príncipes, diplomata em cortes européias, defensor de cristãos-novos e com igual zelo missionário no Maranhão e no Pará, Vieira traz em si uma estatura e um horizonte internacional. O interesse que ainda hoje desperta a sua obra extensa e vária (207 sermões, textos exegéticos, profecias, cartas, relatórios políticos...) só tem a ganhar se for norteado por um empenho interpretativo que consiga extrair dela a riqueza das suas contradições, que são as do sistema colonial como um todo, e que só a experiência brasileira, de per si, não explica."

"Em janeiro de 1681 embarcava no porto de Lisboa com destino à Bahia um jovem sacerdote da Companhia de Jesus nascido em Lucca e que se assinava latinamente Johannes Antonius Andreonius. Vinha para o Brasil a convite do então septuagenário padre Antônio Vieira que ele conhecera em Roma como pregador célebre, valido de Clemente X (que, chamando-o 'amado filho', o isentara da Inquisição portuguesa) e tão caro a Cristina da Suécia que o escolhera para seu confessor. Na Colônia Andreoni ascendeu rapidamente na hierarquia da ordem. Primeiro, lente de retórica no seminário baiano; depois, diretor de estudos, mestre de noviços, secretário particular de Vieira quando este ocupava o cargo de visitador geral, reitor do Real Colégio da Bahia, enfim provincial, o posto máximo da Societas Jesu entre nós."

Antonil é autor de um dos textos mais cínicos sobre o trabalho e a mercadoria já escrito  no Brasil. Acerca deste texto Alfredo Bosi na "Dialética da Colonização" asseverou: "A passagem também poderia chamar-se: nascimento, paixão e morte da cana-de-açúcar do Brasil a Portugal. A cana, que vimos seguindo em suas transformações de natureza trabalhada a mercadoria vendida, reassume neste fecho-síntese o seu estatuto verdadeiro de sujeito. E de sujeito sofredor, cujo calvário reitera o sacrifício por excelência, o paradigma da paixão de Cristo. O holocausto propiciatório serve agora para o novo regime de salvação, que é o mercado europeu, céu aberto à economia colonial. (...) A esta narração dos tormentos padecidos pela cana - que prefiro transcrever a resumir, tão costurada é a sua sintaxe e tão preciso o seu texto - não falta um quê de sádico: aquele exercício brutal de crueldade a que o capitalismo arcaico submete a natureza e o homem."

DO QUE PADECE O AÇÚCAR DESDE O SEU NASCIMENTO NA CANA, ATÉ SAIR DO BRASIL, João Antonil, na obra "Cultura e opulência do Brasil", publicado em 1711:

"É reparo singular dos que contemplam as coisas naturais ver que as que são de maior proveito ao género humano não se reduzem à sua perfeição, sem passarem primeiro por notáveis apertos, e isto se vê bem na Europa, no pano de linho, no pão, no azeite e no vinho, frutos da terra tão necessários, enterrados, arrastados, pisados, espremidos e moídos antes de chegarem a ser perfeitamente o que são. E nós muito mais o vemos na fábrica do açúcar, o qual, desde o primeiro instante de se plantar até chegar às mesas e passar entre os dentes a sepultar-se no estômago dos que o comem, leva uma vida cheia de tais e tantos martírios que os que inventaram os tiranos lhes não ganham vantagem. Porque se a terra, obedecendo ao império do Criador, deu liberalmente a cana para regalar com a sua doçura os paladares dos homens, estes, desejosos de multiplicar em si deleites e gostos, inventaram contra a mesma cana, com seus artifícios, mais decem instrumentos para lhe multiplicarem tormentos e penas.
 
Por isso, primeiramente fazem em pedaços as que plantam e as sepultam assim cortadas na terra. Mas elas, tornando quase milagrosamente a ressuscitar, que não padecem dos que as vêem sair com novo alento e vigor? Já abocanhadas de vários animais, já pisadas das bestas, já derrubadas do vento e, enfim, descabeçadas e cortadas com foices, saem do canavial amarradas e, oh, quantas vezes antes de saírem daqui são vendidas! Levam-se, assim presas, ou nos carros ou nos barcos à vista das outras, filhas da mesma terra, como os réus que vão algemados para a cadeia ou para o lugar do suplício, padecendo em si confusão e dando a muitos terror. Chegadas à moenda, com que força e aperto, postas entre os eixos, são obrigadas a dar quanto tem de substância? Com que desprezo se lançam seus corpos esmagados e despedaçados ao mar? Com que impiedade se queimam sem compaixão no bagaço? Arrasta-se pelas bicas quanto humor saiu de suas veias e quanta substância tinham nos ossos; trateia-se e suspendese na guinda, vai a ferver nas caldeiras, borrifado (para maior pena) dos negros com decoada; feito quase lama no cocho, passa a fartar as bestas porcos sai do parol escumando e se lhe imputa a bebedice dos borrachos. Quantas vezes o vão virando e agitando com escumadeiras medonhas?. Quantas, depois de passado por coadores, o batem com batedeiras, experimentando ele de tacha em tacha o fogo mais veemente, às vezes quase queimado e às vezes desafogueado algum tanto, só para que chegue a padecer mais tormentos? Crescem as bateduras nas temperas, multiplica-se a agitação com as espátulas, deixa-se esfriar como morto nas formas, leva-se para a casa de purgar sem terem contra ele um mínimo indício de crime e nela chora furado e ferido a sua tão malograda doçura. Aqui, dão-lhecom barro na cara e, para maior ludíbrio, até as escravas lhe botam sobre o barrosujo as lavagens. Correm suas lágrimas por tantos rios quantas são as bicas que as recebem e tantas são elas que bastam para encher tanques profundos. Oh, crueldade nunca ouvida! As mesmas lágrimas do inocente se põem a ferver e a bater de novo nas tachas, as mesmas lágrimas se estilam à força de fogo em alambique e, quando mais chora sua sorte, então tornam a dar-lhe na cara com barro e tornam as escravas a lançar-lhe em rosto as lavagens. Sai desta sorte do Purgatório e do cárcere tão alvo como inocente e sobre um baixo balcão se entrega a outras mulheres, para que lhe cortem os pés com facões, e estas, não contentes de lhos cortarem, em companhia de outras escravas, armadas de toletes, folgam de lhe fazer os mesmos pés em migalhas. Daí passa ao último teatro dos seus tormentos, que é outro balcão maior e mais alto, aonde, exposto a quem o quiser maltratar, experimenta o que pode o furor de toda a gente sentida e enfadada do muito que trabalhou andando atrás dele e, por isso, partido com quebradores, cortado com facões, despedaçado com toletes, arrastado com rodos, pisado dos pés dos negros sem compaixão, farta a crueldade de tantos algozes quantos são os que querem subir ao balcão. Examina-se por remate na balança do maior rigor o que pesa, depois de feito em migalhas, mas os seus tormentos gravíssimos, assim como não tem conta, assim não há quem possa bastantemente ponderá-los ou descrevê-los. Cuidava eu que, depois de reduzido ele a este estado tão lastimoso, o deixassem, mas vejo que, sepultado em uma caixa, não se fartam de o pisar com pilões nem de lhe dar na cara, já feita em pó, com um pau. Pregam-no finalmente e marcam com fogo o sepulcro em que jaz e, assim pregado e sepultado, torna por muitas vezes a ser vendido e revendido, preso, confiscado e arrastado e se se livra das prisões do porto, não se livra das tormentas do mar, nem do degredo, com imposições e tributos, tão seguro de ser comprado e vendido entre cristãos como arriscado a ser levado para Argel entre mouros. E ainda assim, sempre doce e vencedor de amarguras, vai dar gosto ao paladar dos seus inimigos nos banquetes, saúde nas mezinhas aos enfermos e grandes lucros aos senhores de engenho e aos lavradores que o perseguiram e aos mercadores que o compraram e o levaram degredado nos portos e muito maiores emolumentos à Fazenda Real nas Alfandegas."

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